força
substantivo feminino
- 1.fís agente físico capaz de alterar o estado de repouso ou de movimento uniforme de um corpo material [símb.: f ou F ].
- 2.qualidade do que é forte; robustez, vigor físico.
,
Nos tempos em que o compositor Noel Rosa perguntava, nos versos de Tarzan
(O filho do alfaiate), de 1936, quem havia dito que ele era forte, se nunca
praticara esporte, nem conhecia futebol, o imaginário popular tinha bem
presente a figura do boêmio de saúde precária, filho da mesma linhagem dos
poetas românticos que morriam jovens, muitas vezes tuberculosos. À sua figura
se contrapunha a do Tarzan encarnado pelo ator e nadador Johnny Weissmuller em
filme do mesmo ano: alto, saudável e forte. Natural que, em tempos de
construção da nação, as aulas de educação física tivessem como ideia formar
jovens que se aproximassem dessa figura, símbolo de homens e de uma nação
pujante.
Mais de 70 anos depois, os padrões e preocupações estão bem distantes
daqueles de então. A tuberculose saiu de cena - momentaneamente substituída
pela gripe A H1N1, popularmente conhecida como suína - e a ideia de força cedeu
lugar à de harmonia entre corpo e meio ambiente. Exemplo disso é a atividade ministrada pelo professor Wallace Oliveira
Marante aos alunos do 6º ano do ensino fundamental do Santa Maria, colégio
particular na zona sul de São Paulo, durante um percurso por uma das trilhas da
instituição. Ao longo de uma caminhada, ele pode aliar os benefícios diretos da
prática a aprendizados mais densos. Os conceitos relacionados a atividades
aeróbicas foram transmitidos ao mesmo tempo em que as crianças contemplavam as
belezas naturais do espaço e desenvolviam com a professora de ciências uma
reflexão acerca de preservação e cuidados com o meio ambiente. Mais tarde, o
conteúdo aprendido pela turma foi compartilhado com toda a comunidade da
escola.
Essa integração entre as aulas de educação física e outras áreas do saber
não é um fato isolado. A tendência tem tomado corpo e se mostrado eficiente.
“Cheguei ao Santa Maria há cinco anos numa reformulação da equipe de educação
física”, conta Marante, que também é coordenador de educação física da Escola
Morumbi, particular e na zona sul paulistana. “Lutei pela construção de um
projeto político-pedagógico que dialogasse com as demais disciplinas.”
Foi uma maneira de despertar o interesse não só dos alunos, mas também
dos docentes, que a partir desse entrosamento se identificaram com o conteúdo
do programa. “Passamos a testar essa proposta por meio de pesquisas que
respondiam a uma metodologia científica e a desenvolvemos e adaptamos de acordo
com as percepções que o grupo de professores trazia para as reuniões
pedagógicas e pelos resultados das ações realizadas”, conta Marante.
Outro bom exemplo é o trabalho feito no primeiro ano do ensino infantil,
com a troca de registros. “Na educação física os alunos registram e leem os
nomes e rotinas das atividades diárias auxiliando o processo de alfabetização”,
explica. O trabalho continua na sala de aula, quando as atividades realizadas
na educação física também são registradas. “É um método de contemplar com maior
amplitude a dimensão do pensar.”
Trata-se de proposta curricular contemporânea, que ilustra uma tendência
da pedagogia do movimento corporal. Mas o Colégio Santa Maria, particular,
ainda está entre as exceções. “A educação física escolar vive um momento
paradoxal”, diz Osvaldo Luiz Ferraz, coordenador do curso de licenciatura da
Faculdade de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP).
“Nunca se produziu tanto no meio acadêmico, mas tudo ainda está muito distante
da realidade dos professores, que não têm acesso ao conhecimento e muito menos
tempo para adaptá-lo de forma adequada à sua realidade.”
Segundo Ferraz, nunca a atividade física foi tão valorizada como agora,
fundamentalmente por questões relacionadas à saúde. “O conceito de saúde não
diz respeito à tradicional área de conhecimento, mas a um estado completo de
bem-estar físico, mental, social e espiritual, dentro dos limites de cada um, e
não simplesmente à ausência de doenças”, diz o estudo Pedagogia do movimento
humano: uma pesquisa do ensino e da preparação profissional, assinado pelo
professor Ferraz em conjunto com os colegas Myrian Nunomura, Elisabeth de
Mattos e Luzimar Raimundo Teixeira. Esse reconhecimento geral da importância da atividade física é, sem
dúvida, decorrente da urbanização, do sedentarismo e das condições de trabalho.
Desde o início da revolução industrial, a questão da inatividade física
tornou-se uma ameaça à saúde pública e atualmente é considerado o quarto maior
fator de risco entre os causadores das doenças que mais atingem o ser humano, conforme aponta o estudo. “Para tentar atenuar os males que afligem a sociedade
contemporânea e considerando que a educação para a saúde é um processo de longo
prazo, programas de educação física escolar são reconhecidos como um
componente-chave na promoção da saúde.”
Ferraz destaca ainda que a promoção de hábitos saudáveis é uma herança
importante da educação física escolar e essa abordagem já é apoiada em
cientificidade convincente. No Brasil, a relação entre atividade física e saúde
pública tem incentivado investigações nessa direção e há avanço expressivo de
um novo campo de pesquisas e intervenções: a epidemiologia - ciência que estuda
quantitativamente a distribuição dos fenômenos de saúde/doença, e seus fatores
condicionantes e determinantes, nas populações humanas - da atividade física.
Ocorre que as condições de saúde não são determinadas pelo nível de
atividade física, mas pelo estilo de vida, pelas condições físicas e sociais do
ambiente, além dos atributos pessoais e das características genéticas. Daí a
dificuldade de aplicar na prática a teoria desenvolvida. “Os professores atuam
nas mais diferentes condições por conta da diversidade do território brasileiro
e da heterogeneidade das turmas, sem contar os hábitos alimentares
deficientes”, observa Ferraz.
Por isso, afirma o especialista, o desafio dos profissionais é encontrar
uma forma para ajudar as crianças a desenvolver um comprometimento com a sua
condição física e saúde por toda a vida. “Partindo-se do pressuposto de que as
crianças têm motivação natural para a atividade física, o ponto-chave é iniciar
um programa de atividades o mais cedo possível, constituído de práticas
interessantes e motivadoras e garantindo que as crianças possam ser
bem-sucedidas nesse envolvimento.”
Nesse sentido, a escola, por meio da educação física, tem sido um dos
caminhos para promoção da saúde. A experiência das escolas tem impacto
duradouro, seja negativa ou positivamente, o que demanda muita responsabilidade
na condução dos programas. “O ideal é que o indivíduo seja capaz de planejar
sozinho as atividades e torná-las parte essencial de sua vida”, salienta
Ferraz.
Baixa atividade
Embora os meios de comunicação promovam o estilo de vida mais ativo, as estatísticas revelam que o nível de atividade da população em geral ainda está aquém do desejado. Uma pesquisa realizada em âmbito nacional pelo Datafolha mostrou que 60% dos brasileiros não praticam nenhum tipo de exercício, um percentual alarmante segundo os especialistas. Os números não são muito animadores em outras partes do mundo. Em Portugal, a população sedentária também chega a 60% e nos Estados Unidos, é de 45%. Na Inglaterra, menos de 20% da população pratica regularmente alguma atividade física com o intuito de beneficiar a saúde. “Crianças ativas nem sempre serão adultos ativos. Da mesma forma, crianças sedentárias não serão necessariamente adultos e idosos ativos”, mostra o estudo.
Para Ferraz, a mudança de hábito dependerá da qualidade das experiências
e das orientações recebidas nas fases anteriores da vida. Por essas e outras, a
educação física precisa dialogar também com a psicologia. “Está comprovada a
relevância dos movimentos corporais para o desenvolvimento da criança.” Tem ainda um outro viés, na medida em que os movimentos se tornam uma
manifestação cultural. Vide o caso das danças e dos jogos olímpicos. “Não há
fenômeno social tão completo como a Copa do Mundo de futebol”, avalia Ferraz.
Não que a proposta seja transformar a educação física num discurso sobre a
cultura corporal do movimento. A ideia é que por meio da vivência e da reflexão
o aluno adquira instrumentos para desenvolverem-se em três vertentes, todas
elas derivadas da autonomia conquistada: gerenciar a própria atividade física;
atender adequadamente aos movimentos do cotidiano; apreciar e usufruir os
elementos da cultura corporal de movimento.
“Convém esclarecer que a perspectiva do praticante num programa de
educação física pode ser diferente da perspectiva do profissional”, alerta
Ferraz. “O aluno pode jogar futebol como um fim em si mesmo, mas o professor
deve ter clareza dos objetivos educacionais envolvidos na atividade.” Ou seja,
na escola o conteúdo do jogo é um meio para alcançar os objetivos da
escolarização.
É importante destacar que o conceito de movimento implica muito mais do
que o deslocamento do corpo e da contração muscular. É por meio do movimento
que o ser humano se relaciona com o meio ambiente para alcançar seus objetivos.
“Comunicando-se, expressando seus sentimentos e sua criatividade, o ser humano
interage com o meio físico e social, aprendendo sobre si mesmo e sobre o
outro.”
Mas como implementar um projeto pedagógico no qual as diversas áreas ou
momentos educativos não sejam apenas justapostos? Como estabelecer uma
intervenção pedagógica em que a especificidade de cada área seja integrada em
um todo maior, considerando que as capacidades humanas constituem-se em espaços
diferenciados?
Para Mildred Aparecida Sotero, professora da Escola de Aplicação da
Faculdade de Educação Física e Esporte da USP - entidade nascida com o
propósito de multiplicar metodologia e didática para todo o Estado de São Paulo
-, uma proposta curricular cujo objeto de estudo da educação física situa-se na
relação do movimento humano com a cultura corporal deve ser expressa por meio
de jogos, brincadeiras, ginástica, dança, enfim toda e qualquer manifestação
corporal. “É preciso criar um conteúdo multidisciplinar e sua aplicação deve
ser casada com a atuação de outros professores”, diz. Um exemplo é o ensino da cultura popular brasileira por meio da dança,
como é o caso do maracatu, manifestação da música folclórica pernambucana. “O
aprendizado envolveu uma contextualização ampla que transitou pela economia e
pela história brasileira, entre outras disciplinas”, diz Mildred.
Essa nova educação física constitui uma área do conhecimento fundamental
para que os alunos se desenvolvam não somente nos aspectos corporais, mas
também nos aspectos relacionais, envolvendo aí a aptidão para trabalhar em
grupo, a necessidade de persistir e trabalhar duro para obter êxito nas tarefas
do dia a dia e a percepção e consciência de pertencer e protagonizar papéis
diferenciados em um grupo de trabalho. Trata-se de uma proposta que é uma
importante ferramenta na formação de um aluno competente corporalmente,
articulado nas relações envolvidas em uma linguagem diferente da escrita e
capaz de refletir e discutir sobre os elementos da nossa cultura corporal, bem
como os limites éticos do esporte e do movimento humano.
Sidirley de Jesus Barreto, que leciona a disciplina psicomotricidade nos
cursos de educação física, pedagogia e fisioterapia da Universidade Regional de
Blumenau, completa que, no Brasil, João Batista Freire defende desde a década
de 1980 uma educação de corpo inteiro, tendo a educação física escolar sob essa
perspectiva um papel fundamental. “Sabe-se que diante dos avanços nas
neurociências, com destaque no que tange à corporeidade para o russo Alessander
Luria e para o português Antonio Damásio, que o movimento intencional é a pedra
de toque para a organização cerebral, inclusive para a reorganização de novas trilhas
neurônicas, no que tange ao aspecto da reabilitação”, afirma.
Nesse caminho, aponta a musicalização como um meio de favorecer o
letramento e reduzir os níveis de ansiedade e estresse, aproveitando para levar
os estudantes a usar as palavras na produção de texto individual e na
organização de um conteúdo coletivo. “Quando há espaço para a inter e a
transdisciplinaridade, as atividades físicas podem ser trabalhadas nas aulas de
português e de idiomas, por exemplo.”
Então, sugere Barreto, essa proposta passa a ser de toda a escola, de
todos os docentes. Segundo o professor, que também é delegado-adjunto da
Federação Internacional de Educação Física de Santa Catarina (Fiep/SC), com a
vivência corporal inicial proporcionada pela musicalização estimulam-se também
as inteligências múltiplas relatadas pelo psicólogo americano Howard Garner -
corporal-cinestésica, musical, interpesssoal, linguística, lógico-matemática,
intrapessoal e espacial (Gardner hoje acrescenta outras inteligências a esta
lista inicial, descrita nos anos 80). “Estimulo meus alunos a buscarem essa
perspectiva”, conta. “Mas o mais difícil é conseguir a adesão de todos os
docentes.”
Na avaliação de Barreto, a educação física escolar, como toda a educação
física, atravessa uma crise no plano da intervenção, depois de ter passado por
uma crise epistemológica entre as décadas de 1960 e 1990. “Mundialmente, temos
produções científicas capazes de dignificar a educação física em âmbito
escolar, mas na prática há uma grande dificuldade.”
Transpor esse fosso parece ser o grande desafio da atualidade. A
legalização da profissão, como ocorreu no Brasil, garante a legalidade, mas não
garante e respeitabilidade social. “Esta só acontecerá quando realmente a
educação física deixar de ser confundida com o esporte em âmbito escolar e
passar a ser importante realmente para todos, em uma práxis transformadora”,
completa Barreto.
Ele acredita que para superar as questões sociais é preciso não somente
ter criatividade, mas competência para intervir, além de saber ouvir e
perguntar. “É preciso abandonar a arrogância da academia”, pontua. “Temos de
buscar fundamentar uma proposta nacional, que leve em consideração as questões
regionais e locais.”
Está claro que atualmente a educação física convive com uma multiplicidade
de propostas de concepções pedagógicas para a escola. “Entretanto, se por um
lado essa diversidade parece indicar a riqueza da discussão teórica, de outro
lado, na sua maioria, as propostas advogam exclusividade, o que impossibilita o
diálogo de teorias que poderiam se complementar”, analisa a professora Liana
Braid, coordenadora do curso de educação física da Universidade de Fortaleza
(Unifor).
Essa necessidade de exclusividade pode, como no clássico
samba de Noel, empobrecer a compreensão do mundo, assentando sua força em um
ponto único, com consequências próximas daquelas vividas pelo filho do
alfaiate: “O meu parceiro sempre foi o travesseiro/E eu passo o ano inteiro sem
ver um raio de sol/A minha força bruta reside/Em um clássico cabide, já cansado
de sofrer/Minha armadura é a de casimira dura/Que me dá musculatura, mas que
pesa e faz doer”.
Rachel Cardoso
muito bom esse texto, ótima iniciativa
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